O Desporto como fábrica de génios (artigo de José Augusto Santos, 21)

Em 1999, um prestigiado semanário francês publicou um dossiê sobre “Os Gênios do Século XX”. Os chefes iluminados de um conselho editorial altamente educado decidiram sobre os seguintes dezoito nomes: Coco Chanel, Maria Callas, Sigmund Freud, Marie Curie, Yves Saint-Laurent, Le Corbusier, Alexandre Fleming, Robert Oppenheimer, Rockefeller, Stanley Kubrick, Bill Gates. Pablo Picasso, Ford, Albert Einstein, Robert Noyce, Edward Teller, Thomas Edison, Morgan.

Para já temos de definir o que é um génio? Se definirmos um génio como um ser humano inquieto, desarrumador de realidades, então há algo a dizer sobre os génios escolhidos pelos pretensamente cultos jornalistas do semanário parisiense.

Na vida, há momentos em que temos que decidir, mas teremos que estar cientes de que uma seleção atinge automaticamente a rejeição de um ou mais. Eu decido isso sobre isso. Por essa razão, existem possíveis seleções que não devem ser feitas porque há uma ameaça de ser sectária, injusta, redutiva, elitista e talvez vingativa.

A lista atrás elaborada pelos, não me custa muito acreditar, inteligentes jornalistas franceses abre um imenso campo de discussão sobre a real valia de uns, a importância sociológica dos feitos de outros e o “pecado” do esquecimento de muitos. Toda a seleção é permeável à crítica. Com o lastro cultural que me justifica então critiquemos. 

Se perguntarmos à população portuguesa ou chinesa quem foi Robert Noyce e o que ele fez de importante, com exceção dos engenheiros acredito que 99,9% da gente não sabe responder. No meu entender está muito bem integrado nessa lista pois com a sua descoberta – o microship, ou seja, o circuito integrado de silício, abriu as portas de uma verdadeira revolução na eletrónica moderna. Robert Oppenheimer, dirigiu o projeto Manhattan que resultou na criação da bomba atómica. Edward Teller, “pai” da bomba de hidrogénio, também integrou o projeto Manhattan. 

Recusando qualquer consideração moralista pode-se considerar, em virtude das resultantes sociais e políticas dos seus inventos, Noyce foi um “génio” do bem e Oppenheimer e Teller “génios” do mal. Temos de levar em atenção que a criatividade científica é sempre subsidiária das criatividades anteriores. Cada cientista coloca uma argola na correia interminável da investigação científica. Muitas vezes, em ciência, não se sabe bem o que é de quem. Vejam-se as dúvidas que pairam sobre a inventividade de Thomas Edison. Passemos à frente.

Stanley Kubrick. Aqui, dói até mesmo nas profundezas da alma. Dor persistente atinge um cineasta com saúde ruim como eu. Não, Sr. jornalistas franceses; há muito melhor, mesmo em seu próprio país. Fellini, Pasolini, Woody Allen, Eisenstein, Bergman, Godard, Coppola, Wenders, Lynch, Scorsese, Chaplin. Não posso minimizar filmes como 2001-Space Odyssey, Shining, Dr. Strange Love, Spartacus (um dos filmes da minha juventude), wellArray.. Eu sou realmente uma besta. Kubrick é sem dúvida um dos grandes do cinema, com uma posição na areopage das “bandas divinas”, mas eu gosto muito das outras. Os gostos não são discutidos e, neste plano específico, as características dos jornalistas franceses. Aqui eu dou minha mão e meu pé para torcer. Mas os eminentes profissionais de notícias na França, sem dúvida, colocaram a articulação quente-tarsal, o astragalus e os metatarsos na poça.

O ridículo da escolha, no meu também sectário entender, surge com a integração de dois costureiros em tão “genial” lista e a ausência de nomes deveras importantes para a cultura contemporânea. Para não me acusarem de luso-centrismo vou esquecer muitas das nossas luminárias que estão incontornavelmente entre os “gigantes” planetários do século XX como Fernando Pessoa, José Saramago, Vergílio Ferreira, António Damásio, Carlos Paredes, Almada Negreiros, Lobo Antunes, Álvaro Siza Vieira, Sobrinho Simões, Maria Helena Vieira da Silva, Natália Correia, Agostinho da Silva, José Hermano Saraiva, Edgar Cardoso, Maria João Pires e Paula Rego.

 Os senhores franceses esqueceram-se, e parece intencional esse olvido, de Garcia Márquez, James Joyce, Brecht, Italo Calvino, Kafka, Mircea Eliade, William Faulkner, Graham Greene, Thomas Mann, Marcuse, Sartre, Barthes, Nabokov, Umberto Eco, André Breton, Proust, Bertrand Russell, Popper, Ortega Y Gasset, Camus, Vargas Llosa, Philip Roth, etc. É interessante que na lista não surja nenhum romancista, nenhum poeta, nenhum dramaturgo, nenhum filósofo. 

Picasso está sozinho, mas falta-lhe a companhia de Salvador Dali, Kadinsky, Miró, Matisse, Braque e outros grandes na expressão pictórica. 

Estão inseridos na lista dois fazedores de dinheiro, Ford (automóveis) e Rockefeller (petróleo). Génios? Talvez, a desenvolver projetos que outros criaram. Mas, na lista, nem um único fazedor de música. Esquecendo-se do famoso sintagma grego “Ginástica para o corpo e música para a alma”, deixaram no tinteiro Stravinsky, Prokofiev, Schoenberg, Villa-Lobos, etc. Na minha seleção pessoal incluiria dois nomes que farão arrepiar os puristas da música clássica: um que meteu em muitos dos meus filmes a dimensão do sonho – Ennio Morricone e os Beatles, os grandes compositores de músicas e poesias da minha geração.  

Mas, e aqui tenho de assumir que vou pleitear em causa própria, os prescientes jornalistas franceses esqueceram-se, neste caso com dolo intencional, dos mitos mais importantes da atividade humana do século XX e que continua neste século – o desporto. Eles não sabem, nem sonham, que o desporto, e aqui introduzo a dança pois ambos consubstanciam a Arte do inefável, é a força catalisadora mais pregnante dos últimos séculos, de uma forma que só terá comparação na Grécia de Péricles. 

Claro, isso pode começar na Europa e acabar na Oceania e localizar mitos esportivos que têm perfeita compatibilidade com o qualificador genial.

No panteão dos gênios do esporte, verdadeiros deuses que têm uma posição no Olimpo com Zeus e seus meninos, darei apenas alguns exemplos começando com estranhos. Claro, vou atrair o calor dos ídolos da minha geração, deixando a coisa mais nova a quem precisa fazer uma crítica para o mais produtivo do século 21.

Eis alguns nomes que me fazem cantar hossanas aos céus por ter sido seu coetâneo: Michael Jordan (basquetebol), Pelé (chutos na bola), Maradona (chutos na bola), Mike Spitz (Natação), Sebastian Coe (meio-fundo Atletismo), Randy Barnes (Lançamento do Peso), Jan Zelezny (lançamento do dardo), Carl Lewis (100m e salto em comprimento), Sergey Bubka (salto com vara), Rodolfo Nureyev (ballet), Dinis Santos (dança contemporânea).

Agora os meus heróis caseiros. Eu, que só tenho uma cor no meu coração futebolístico, azul e branco, perdi-me de amores por três atletas “inimigos”: Carlos Lopes, Joaquim Agostinho e Eusébio. Disse amor, sim, porque de amor se trata. Quando a admiração se eleva para um sentimento de partilha em que o crescimento alheio nos faz a nós também crescer o amor acontece como expressão da mais sentida gratidão.  Tive o privilégio existencial de acompanhar as carreiras destes génios lusos, os seus momentos de glória e os momentos maus nos quais se evidenciou a sua verdadeira têmpera de campeões. Já o disse várias vezes e repito com prazer: para lá da minha mãe que me estava sempre a dar porrada (vá-se lá saber por que razões estranhas) só estes homens me fizeram chorar. Chorei com Eusébio no mundial de 1966 após derrota com a Inglaterra, chorei com os relatos do Carlos Miranda em A Bola sobre os infortúnios do Joaquim Agostinho, chorei com a cavalgada heroica do Carlos Lopes para a meta nos Jogos Olímpicos de 1984 – a primeira medalha de ouro olímpica do desporto português. 

Por onde devo passar quando trago as lembranças máximas de agradecimentos que o jogo me deu? Que, se um dos anais da excelência humana não tem os gênios do jogo, é um documento imperfeito e incompleto onde um tamanho humano atual está faltando.

 

José Augusto Santos é Professor da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto

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