Detalhes das medidas tomadas pelos assessores de Bolsonaro para trazer a Rolex ao Brasil

Desde a derrota na eleição presidencial de 2022, Jair Bolsonaro acumula uma sucessão de reveses. Ele teve os direitos políticos suspensos por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tornou-se alvo no inquérito sobre os atos antidemocráticos de 8 de janeiro e viu a lista de casos nos quais é investigado crescer no Supremo Tribunal Federal (STF), com a abertura até de uma apuração sobre fraudes em cartões de vacinação. O capitão também sofreu arranhões na autoproclamada fama de vestal — ou “incorruptível”, como gosta de repetir — depois de a Polícia Federal declará-lo suspeito de ser o beneficiário de uma “organização criminosa” que desviou joias do acervo da Presidência da República, tirou-as do Brasil de forma clandestina em voos oficiais da Força Aérea Brasileira (FAB) e vendeu as peças nos Estados Unidos, revertendo os ganhos financeiros para o ex-presidente. Sigilosa, a investigação sobre as joias têm avançado e complicado a situação jurídica de Bolsonaro e de pessoas próximas a ele, cujas digitais estão cada vez mais nítidas nas simbólicas transações de venda e recompra de um relógio de ouro branco da marca Rolex dado pelo governo da Arábia Saudita, em outubro de 2019, ao então presidente.

Ao deflagrar uma operação em agosto passado, a Polícia Federal registrou que o Rolex e um outro relógio de luxo, da marca Patek Philippe, foram vendidos em junho de 2022, quando Bolsonaro ainda era presidente, à loja Precision Watches, localizada na cidade de Willow Grove, no estado americano da Pensilvânia, por 68 000 dólares. O negócio foi fechado pessoalmente pelo tenente-coronel Mauro Cid, que era ajudante de ordens e braço direito de Bolsonaro na Presidência. A PF também registrou que, depois de o escândalo das joias vir a público, em março deste ano, aliados do capitão iniciaram uma ofensiva para recomprar e repatriar presentes valiosos comercializados em nome dele, numa tentativa de evitar transtornos ainda maiores com a Justiça. A PF descobriu que Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro, recomprou o Rolex e, por isso, a polícia apreendeu seus telefones celulares e o intimou a depor. O depoimento de Wassef, ao qual VEJA teve acesso, preenche lacunas, esclarece pontos nebulosos e reforça o papel de um personagem no enredo: Fabio Wajngarten, secretário de Comunicação da Presidência na gestão Bolsonaro e um dos advogados do ex-­presidente no caso das joias.

Durante um depoimento de uma hora e quarenta minutos, Wassef insistiu que o usuário que lhe pediu para comprar o Rolex e trazê-lo de volta ao Brasil foi Fabio Wajngarten, que justificou seu pedido diante da opção de que o Tribunal de Contas da União (TCU) descobrisse a devolução de presentes ganhos por meio de Bolsonaro. ele já havia planejado férias para os Estados Unidos em março, 2023. In dias que antecederam o embarque, Wajngarten teria ligado e enviado mensagens “continuamente” para reforçar a demanda. Assim que desembarcou em Miami, Wassef foi alvo de ligações “obsessivas” e “compulsivas” de Wajngarten, devidamente gravadas em celulares apreendidos pela polícia. Wassef também afirmou que concordou em prestar esse serviço porque Wajngarten havia prometido pagá-lo, o que ainda não havia acontecido, e porque ajudaria a empresa brasileira a devolver um ativo à União. “É preciso processá-lo para recuperar esse valor”, diz a nota da PF.

Além de nomear Wajngarten como mentor do plano de resgate, Wassef detalhou o passo a passo para recomprar o Rolex e repatriá-lo para o Brasil. Como já havia afirmado publicamente, comprovou que pagou o relógio em dinheiro, com recursos próprios, devidamente declarados. Em 13 de março, dois dias depois de desembarcar em Miami, ele sacou US$ 35 mil de uma conta bancária, que acrescentou a outros US$ 14 mil que mantinha em sua casa em Miami. No dia seguinte, ele voou para a Filadélfia e de lá dirigiu cerca de duas horas até Willow Grove, onde comprou o relógio por US$ 49 mil. Uma vez realizado seu projeto, ele continuou sua aventura nos Estados Unidos, visitando em particular Nova York, ainda de propriedade da Rolex. No meio da turnê americana, segundo Wassef, Wajngarten pediu que ele voltasse ao Brasil com a joia na mão, o que ele recusou, alegando que era um usuário público e poderia ser reconhecido. Ele acrescentou que, se embarcasse no Rolex, entregaria o relógio à Receita Federal no desembarque. Diante de um impasse, Wajngarten combinou com Wassef que um brasileiro, conhecido do próprio Wajngarten, viajaria com a Rolex dos Estados Unidos para o Brasil.

Ele concordou que Wassef entregaria o relógio ao representante no estacionamento de uma loja Best Buy em Miami. Feito isso, o emissário de Wajngarten trouxe os bens de volta ao Brasil. Segundo o depoimento, o portador, cuja identidade Wassef não pode revelar, entregou-lhe o relógio no local designado em Atibaia, mesmo local onde foi preso Fabrício Queiroz, acusado de ser o cracker do gabinete do deputado estadual da época, Flávio. . Bolsonaro. A odisseia continua. Três dias depois de receber o Rolex, Wassef transmitiu a ordem a Mauro Cid no aeroporto de Congonhas, momentos antes do ex-ajudante de campo embarcar para Brasília. A guarda, que saiu da Arábia Saudita, chegou a Brasília, saiu clandestinamente do país com destino aos Estados Unidos, passou por Los Angeles, Willow Grove, Nova York, Miami, Atibaia e São Paulo, está hoje confiada à Caixa Econômica Federal. Conhecido pela lealdade canina a Bolsonaro, Wassef disse em seu depoimento que não houve envolvimento do ex-presidente na operação de recuperação da Rolex e afirmou que Mauro Cid apenas lhe deu a localização da loja onde estava o relógio. O pedido de compra e os detalhes da repatriação, insistiu, vêm de Wajngarten.

Os advogados do presidente em vários casos, Wassef e Wajngarten, são velhos conhecidos. Foi o primeiro que levou Bolsonaro ao segundo, no início de 2016, para um jantar na casa do empresário Meyer Nigri, dono da Tecnisa. Depois houve Wassef, que conheceu o capitão em 2014, quando ainda era deputado do baixo clero; ele tomou várias medidas para aproximá-lo de Wajngarten, que acabou se tornando parte da equipe da cruzada presidencial e do governo. Procurados por VEJA, Wassef e Wajngarten disseram que sim. Não comente o caso porque a investigação é sigilosa. Além de ser advogado de Bolsonaro nesse caso, Wajngarten foi intimado a depor como investigador e gostava de ficar em silêncio. Nos bastidores, ele nega qualquer envolvimento na operação, afirma ter tomado conhecimento do caso pela imprensa e que o depoimento de Wassef seria “uma espécie de vingança por ciúmes sobre seu acesso ao presidente”.

Não será fácil, no entanto, convencer os investigadores dessa tese. Wajngarten já estava no radar da PF porque, entre outros motivos, Mauro Cid mandou um áudio ao ex-secretário de Comunicação da Presidência em 13 de março, um dia antes de Wassef comprar o Rolex: “Cara, nem sabia que você estava no circuito. E eu falei, pô, se não fosse o Fabio nessa guerra toda, o negócio estaria muito mais enrolado”. Segundo a PF, pessoas da confiança de Bolsonaro tentaram vender pelo menos três kits de joias recebidas como presentes de chefes de Estado e autoridades estrangeiras. Em seu acordo de delação premiada, homologado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes e cujos pontos foram antecipados por VEJA, o tenente-coronel declarou ter vendido os dois relógios nos Estados Unidos sob ordens diretas do ex-presidente e repassado o dinheiro, em mãos, para ele. “O presidente estava preocupado com a vida financeira. A venda pode ter sido imoral? Pode. Mas a gente não achava que era ilegal.”

As defesas dos investigados pretendem fazer esse debate preliminar — se houve ilegalidade nas transações. A ale­ga­ção é de que não existe uma lei que defina de forma clara e cristalina qual presente deve ir para o acervo público e qual deve ir para o acervo pessoal do presidente, que poderia fazer com ele o que bem entendesse. Argumenta-se ainda que o entendimento adotado pelo TCU em 2016, segundo o qual apenas acessórios como bonés e perecíveis podem ser apropriados pelo presidente de turno (e vendidos), não tem força legal e, por isso, não pode levar à responsabilização de Bolsonaro e de seus aliados sob investigação. Essa tese, caso seja aceita pela Justiça, pode sujeitar Bolsonaro apenas a uma ação de improbidade, ilícito que não prevê pena de prisão, ou enquadrá-lo em um crime menor, como o de peculato culposo, em que também não se tem notícia de condenado à cadeia. Aventado pela Polícia Federal, o crime de peculato, com previsão de até doze anos de prisão, pode ser descartado se ficar comprovado que os investigados não sabiam que estavam cometendo um crime e se repararem completamente o dano, o que tentaram fazer com a operação de resgate.

Um advogado familiarizado com o caso diz também que, se for decidido que as joias não poderiam ser vendidas, haverá um esforço para diferenciar a conduta de quem comercializou o Rolex, e teria cometido um crime, de quem se esforçou para recuperá-lo e devolvê-lo ao patrimônio público, que não estaria sujeito a punição. Por esse raciocínio, nem Wassef nem Wajngarten seriam punidos pela Justiça. Apesar de divulgar uma vida franciscana, Bolsonaro não enfrenta dificuldades financeiras. Só por meio de uma campanha de arrecadação via Pix, levantou cerca de 17 mi­lhões de reais. Sua preocupação real é com o risco de ser preso. Um risco materializado tanto na depredação das sedes dos Três Poderes por bolsonaristas radicais como num Rolex de ouro branco que, ao percorrer diferentes cidades, países e até continentes, ajudou a dimensionar a elasticidade moral do ex-presidente. Só com o avanço das investigações ficará claro se houve imoralidade, ilegalidade, trapalhada — ou tudo ao mesmo tempo.

Publicado em VEJA de 1º de dezembro de 2023, edição nº 2870

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