Depois de quatro anos, a Funai limitou o acesso a aldeias isoladas no sul da Amazônia.

Com presença confirmada desde 2021, este foi o primeiro passo em direção à proteção efetiva dos indígenas isolados que habitam o território no Purus.

Panacos de Mamoriá Grande isolados da Resex Médio Purus. Foto: Daniel Cangussu/FPE Coleção Madeira-Purus/Funai, 2021

Buscando garantir a proteção integral dos territórios com presença de povos indígenas isolados e de recente contato, no dia 11 de dezembro de 2024, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) publicou a portaria 1.256/2024, que restringe o acesso à Terra Indígena Mamoriá Grande.

Localizada entre os municípios de Tapauá e Lábrea (AM), a área de aproximadamente 260 mil hectares possui confirmação da presença de indígenas isolados desde agosto de 2021. Segundo a equipe da Funai que identificou a presença indígena, esse grupo seria composto de aproximadamente 25 pessoas.

Acesse a localização da Terra Indígena Mamoriá Grande:

Neste ano, em julho de 2024, a Funai já havia criado um Grupo Técnico para identificar a Terra Indígena, que abrange a área do Mamoriá Grande e  do Igarapé Grande, reivindicada pelo povo Apurinã. A portaria de interdição, entretanto, abrange apenas a área do Mamoriá Grande.

A portaria de interdição emitida neste mês cita a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 991, proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e na qual o ISA é Amicus Curiae. A ação de 2022 pede que o Supremo Tribunal Federal  (STF) tome medidas urgentes de proteção aos povos indígenas isolados e de recente contato, garantindo a publicação de portarias de restrição de uso até a finalização dos processos demarcatórios ou de estudo que descarte a presença de indígenas isolados na área.

Relatos e pedidos de cobertura dos isolados de Mamoriá Grande por meio da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira Purus foram ignorados por muito tempo pela Funai, obrigando a organização a permanecer sem cobertura por meses na reserva extrativista do Médio. Purus (Resex).

Em 2022, o cenário foi noticiado pela imprensa e chegou às páginas do e-book do ISA Povos Indígenas no Brasil 2017-2022, em matéria especial sobre o caso. Descubra na íntegra:

Karen Shiratori (antropóloga, Universidade de Coimbra) e Daniel Cangussu (indigenista, Funai e ICB/UFMG)

Em janeiro de 2022, a imprensa brasileira noticiou que um novo grupo de indígenas isolados havia sido recentemente localizado no sul do estado do Amazonas por uma equipe de indigenistas da Funai. Em comum, as notícias tinham um tom paradoxal: se por um lado celebravam o trabalho técnico meticuloso de indigenistas e antropólogos que possibilitou localizar mais um pequeno grupo no vasto território da Amazônia, algo a ser celebrado; por outro, apontavam a morosidade do Estado brasileiro em implementar, de forma efetiva, as medidas imprescindíveis e urgentes destinadas à proteção do grupo, cuja existência havia sido oficialmente confirmada em agosto de 2021, quase seis meses antes.

Segundo dados da equipe responsável pelo local, a organização indígena é composta por cerca de 25 outras pessoas. Esse número é estimado pelo número de outras pessoas que instalam as maqueiras – as redes indígenas – bem como pelo número de fogueiras. Visto no acampamento, iluminado dentro da tapíris – um abrigo transitório construído com folhas de palmeira. Cabe ressaltar que a cultura das cortinas dessa organização tem uma clara semelhança com a de outros povos de língua Arawá do continente do interfluxo do médio curso dos rios Juruá e Purus, como os Jamamadi, os Banawá, os Deni. , os Suruwaha e os Hi-Merimã, entre outros povos indígenas isolados.

Embora inicialmente houvesse dúvidas sobre a opção de que a nova organização indígena, denominada “Aislados do Mamoriá Grande”, pudesse ser apenas um componente da organização Hi-Merimã, esta opção foi temporariamente descartada devido às suas outras territorialidades e à burocracia de mobilidade. Os moradores isolados de Mamoriá Grande estavam acampados atualmente em outras quatro tapiris, distantes cerca de trezentos metros entre si, às margens de um riacho localizado dentro da Resex Médio Purus, unidade de conservação sob controle do ICMBio. A datação dos restos mortais revelou que esta organização isolada ocupava o domínio de forma cíclica, dados reiterados por toda a população do domínio que relata a presença de linhas desta organização indígena desde o seu acordo ali há mais de 40 anos.

A inação do governo com a situação dos isolados do Mamoriá Grande deixa evidente sua postura anti-indígena, conforme foi amplamente documentado no dossiê Fundação Anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro (2022), produzido pelo Inesc e pela INA, a associação que representa servidores e indigenistas da Funai. No caso dos povos em isolamento, ademais dos retrocessos e ameaças constantes às bases da política do não contato, desenvolvida e adotada pelo órgão desde os anos 1987, o que se viu foi a adoção de uma clara política de engavetamento de relatórios e documentos que se somaram ao descrédito e perseguição dos servidores.

Enquanto a imprensa destacava a relevância dos documentos e conhecimentos recebidos no terreno, a Funai, por sua vez, continuava a destacar a veracidade dos documentos e, da mesma forma, os estilos de vida de um novo registo de povos indígenas isolados. Aqui utilizamos o termo “novo” não no sentido de descoberta ou novidade, mas no sentido de popularidade de uma nova solicitação de cobertura territorial relativa a equipamentos isolados no Brasil, o que, do ponto de vista jurídico, implica a criação de um novo cadastro, ou seja, a atribuição de um “novo número” com a confirmação de uma nova referência, nos termos burocráticos da Funai.

Graças a uma burocracia negligente, o Estado brasileiro tem fugido ao seu dever de proteger o território desses povos indígenas. Ao rejeitar os estilos de vida de uma organização até então desconhecida do corpo indígena, também se recusa a reconhecer quaisquer novas reivindicações por terras. blindagem territorial e, sobretudo, demarcação de TI.

Acompanhando os dados relativos à localização dos Isolados do Mamoriá Grande, os relatórios também alertavam sobre os riscos aos quais estavam expostos, sobretudo, por conta da grande proximidade entre seus acampamentos e uma das muitas comunidades ribeirinhas localizadas no interior da Resex Médio Purus. Num contexto de pandemia, tal proximidade aumentava sobremaneira o risco de contágio por Covid-19, ainda mais porque as comunidades extrativistas da região apresentavam, na época, menos de 30% de cobertura vacinal. 

As matérias jornalísticas foram acompanhadas por uma série de medidas articuladas através dos movimentos indígenas estaduais e nacionais, dos estabelecimentos indígenas e do Ministério Público Federal (MPF), a fim de obrigar a Funai e a Sesai a adotarem medidas protecionistas concretas, tais como: a instalação de um posto de controle na região e a criação de um “cordão sanitário” baseado na vacinação em massa da população da unidade de conservação vizinha. Medidas que, até à data, não foram implementadas.

A falta de coordenação entre a Funai e o ICMBio contribui para esse cenário turbulento. A postura anti-indígena de ambos os estratos intensificou os conflitos no contexto do Médio Purús, como evidenciam os comentários comuns: “A Resex foi demarcada para as populações ribeirinhas, não para as populações indígenas”; “A Funai não tem controle sobre as unidades de conservação”; “Você não precisa se preocupar com esses índios. Eles foram parar na Resex, mas em breve estarão indo para terras indígenas na área. Esses exemplos, resumidamente, demonstram a magnitude do desafio de articular órgãos de controle ambiental e indígena para proteger os territórios de povos indígenas isolados na Amazônia brasileira.

No sul do estado do Amazonas, em particular, a grande maioria dos registros de povos indígenas isolados são encontrados em UC, terras estaduais e/ou federais ou públicas sem destinação expressa, conhecidos como “espaços vagos”. Os Katawixi, por exemplo, vivem em matas de palha com concentração máxima de babaçu (Attalea speciosa) e fornecem recursos dos riachos que drenam os espaços do Parna Mapinguari, Resex do Ituxi e TI Caititu; grupos isolados de Juma são encontrados na Flona Balata-Tufari; As equipes isoladas do Tupi Kagwahiva moram no Parna, Campos, Amazônicos e Flona de Humaitá.   É dentro desta Flona onde estão as capoeiras das malocas, onde ocorreram alguns dos mais recentes massacres perpetrados pelas equipes do Juma. Até algum tempo antes de sua morte, Arucá Juma visitou esta região para coletar tabocas para confeccionar suas flechas. .

O acelerado processo de destruição da floresta e a interrupção dos processos de demarcação dos territórios dos povos indígenas tornaram, no presente, as UCs áreas de refúgio para muitos dos grupos isolados. Dados preliminares de pesquisadores do Laboratório Sistemas Socioecológicos da UFMG apontam que mais de 50% dos registros relacionados à presença de povos indígenas isolados no Brasil estão localizados no interior de UCs. Não obstante, os técnicos do ICMBio não recebem treinamento para lidar com estas demandas recentes e sequer há legislação específica que permita conduzir esta política de modo interinstitucional. Tal cenário coloca em xeque a própria cultura institucional de um dos principais órgãos de controle ambiental do país que se verá responsável por também garantir a proteção de populações humanas que requerem políticas bastante diferentes das destinadas às populações extrativistas das unidades de uso sustentável. 

Como mostramos para o sul da Amazônia, citado aqui como uma situação exemplar, estamos diante de um desafio vital para a política de controle de espaços blindados no Brasil, e que implica um profundo repensar da lógica blindada e do papel da abordagem etnoambiental. Diante desse cenário, é urgente pensar em modelos mais incorporados de blindagem territorial – como é o caso de outros países sul-americanos que destacam a importância dos mosaicos e corredores ecológicos – para proteger a biodiversidade e as comunidades de forma articulada. extrativistas e povos indígenas.  

Se aprendemos alguma coisa nos últimos quatro anos, é o quão prejudicial pode ser deixar toda uma política indigenista centralizada dentro do governo e, pior ainda, em um único ministério, sem abertura e discussão com movimentos indígenas e organizações civis. sociedade. estabelecimentos; e que os governos brasileiros são tradicionalmente anti-indígenas, alguns mais do que outros. Até hoje, a Funai não reconhece os modos de vida da nova entrada de isolados de Mamoriá Grande, a organização segue desprotegida e os trabalhadores locais da Funai são ameaçados por invasores de territórios indígenas e pelas lideranças do próprio governo.  

A energia política da Apib e da Coiab e seu protagonismo na proteção dos direitos dos povos isolados, especialmente nos recentes conflitos jurídicos para definição de medidas de isolamento e segurança devido à pandemia causada pela Covid-19, apresentam sintomas de uma radicalização e substituição no principais atores que atuarão na tomada de decisões relacionadas a esta política indigenista/indigenista no Brasil. (julho de 2022)

*Conteúdo publicado originalmente pelo Instituto Socioambiental, escrito por Mariana Soares (jornalista do ISA) e Tatiane Klein (pesquisadora do ISA)

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