A Brasil Paralelo (BP) lançou no dia 16 de janeiro o seu “primeiro filme”, alardeado pelos quatro cantos das redes como a primeira produção cristã da produtora especializada em fornecer material para a extrema direita no Brasil. Além de tentar ocupar escolas e redes de ensino com seu material de “revisionismo histórico”, agora quer investir no mundo das artes, começando pelo longa-metragem “Oficina do Diabo”, segundo a BP, obra da cabeça “genial” de Filipe Valerim, um dos donos da empresa.
O filme
Em quase duas horas de duração, o filme, que foi filmado entre 2022 e 2023, é carregado de chavões da extrema direita, revisionismos históricos, frases desconexas e muitos jogos de semiótica e detalhes que apostam numa interpretação com segundas intenções e temas recorrentes: aborto, “terrorismo de esquerda”, artistas como antagonistas da fé e outras coisas mais. A ideia central do filme se passa através de um aprendiz de diabo que recebe orientações de um diabo mais experiente sobre como conseguir ganhar a alma de um rapaz, um artista talentoso e promissor, sem deixar que ele caia “nas garras” da religião e, ao contrário da fé, se entregue às paixões e à fama, perdendo a sua vida e indo para o “inferno”.
As abordagens são feitas, sem novidade alguma, de maneia rasa, superficial e totalmente doutrinária e parcial. As personagens são caricatas e ideologicamente formadas: o artista em crise entre sua carreira e sua fé, a mãe (interpretada pela atriz Elizângela, que faleceu por sequelas da Covid-19) muito religiosa e devota, mas que sofria por esconder um aborto realizado no passado, um amigo religioso e fiel a Deus capaz de “argumentar” com os “progressistas”, um escritor cientificista que zombava da fé cristã, e, claro, os demônios que estão o tempo todo em ação no filme.
A história se passa no final dos anos 1960, com o país em plena ditadura militar, mas o filme só mostra um grupo armado, chamado de “guerrilheiros do Paraná”, que explode postos de gasolina e matam pessoas numa tentativa frustrada de tomar a rádio local. Os mortos e sobreviventes desse episódio são chamados de “heróis” que impediram a guerrilha de conquistar a emissora.
Em dois momentos bem caricatos, fica evidente a ideologia e as críticas políticas e educacionais que a extrema direita faz constantemente no Brasil. Em uma cena que acontece na livraria da cidade, onde o autor cientificista vai fazer uma palestra para zombar da fé cristã, junto aos militantes “da esquerda”, o diabo aparece sentado entre duas estantes: filosofia e sociologia, como se fossem campos dominados por ele. Em outra cena, o chefe dos demônios (o equivalente a Satanás) tem uma placa na mesa com o seu nome: Barbatos. Clichês baratos de uma extrema direita sem capacidade de argumentação.
A grande farsa
Mas a principal farsa do filme se dá fora das telas: apesar de apresentado como um roteiro original escrito por Filipe Valerim, que chega a dar uma entrevista dizendo que a ideia veio por conta de seu noivado, a obra é evidente, clara e absurdamente inspirada pelo livro do escritor irlandês C.S.Lewis: The Screwtape Letters (traduzido no Brasil como “Cartas do Inferno” ou “Cartas de um diabo a seu aprendiz”. Lewis é um autor muito respeitado no meio cristão, principalmente protestante e tem como obra mais conhecida “As Crônicas de Nárnia”). O livro trata exatamente de um diabo mais experiente ensinando um diabo aprendiz a arte das tentações e de como levar um jovem talentoso a se perder em si mesmo e não chegar à fé cristã.
Na verdade, o filme chegou a ser anunciado para 5 de outubro de 2023 e a Brasil Paralelo chegou a publicar: “Baseado em Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, de C. S. Lewis, autor de As Crônicas de Nárnia, #OficinaDoDiabo estreia em breve somente nos cinemas”, tendo inclusive uma pré-estreia no dia 11 de setembro de 2023, em São Paulo. Acontece que ao ser abordada sobre o filme no Brasil, a The CS Lewis Company Ltd., responsável pelo espólio do autor, negou ter sido contatada pela Brasil Paralelo. Iniciou-se, então, uma “operação abafa” e quaisquer menções a “inspirado” ou “com base na obra” foram apagadas de todas as publicações sobre o filme, que foi mandado para a “geladeira”, até a fumaça baixar.
Quase um ano e meio, o filme reaparece como se nada tivesse acontecido e, sem nenhuma menção às pinturas de C. S. Lewis, existe até uma página paralela do Brasil de 15 de julho de 2024 dizendo que o filme “tem um devoto e filosófico o O tema é totalmente original e independente, nem representa uma adaptação ou derivação de qualquer outra pintura passada.
E o que é pior, eles podem um dos trabalhos vintage de C. S. Lewis em um desperdício inteligente de filmes pró-explicativos.
Público-alvo
Uma coisa chama a atenção: apesar de ser baseado na obra de um autor protestante, o filme é voltado principalmente para o público católico. E isso não é à toa. É justamente onde a extrema direita tem investido nos últimos tempos de forma pesada, já que os evangélicos, em boa parte, foram tomados pelo conservadorismo e fundamentalismo. A reação católica foi tardia, mas começa a mostrar resultados: nas últimas pesquisas a esquerda tem demonstrado leve queda de aprovação por parte também dos católicos.
O tema católico do filme não é acidental. Estamos lidando com uma organização em execução que precisa tornar o fundamentalismo a explicação de por que a disseminação de ideais extremistas da lei, como nazismo e fascismo que entendemos aqui e ali em propulsão em terras brasileiras.
O alerta é dado.
E a cabeça vazia é uma oficina remota, que é como o diabo.
* Este artigo reflete necessariamente a opinião da revista Fórum.